quarta-feira, 27 de abril de 2011

Carta da Sociedade Civil à Excelentíssima Presidenta Dilma Rousseff

Excelentíssima Presidenta Dilma Rousseff,
Esta carta é uma manifestação de pessoas e organizações da sociedade civil e busca expressar nosso extremo desconforto com as mudanças ocorridas no campo das políticas culturais, zerando oito anos de acúmulo de discussões e avanços que deram visibilidade e interlocução a um Ministério até então subalterno. Frustrando aqueles que viam no simbolismo da nomeação da primeira mulher Ministra da Cultura do Brasil a confirmação de uma vitória, essa gestão rapidamente se encarregou de desconstruir não só as conquistas da gestão anterior, mas principalmente o inédito, amplo e produtivo ambiente de debate que havia se estabelecido.
Os signatários desta carta acreditam na continuidade e no aprofundamento das políticas bem-sucedidas do governo Lula. Essas políticas estão sintetizadas no Plano Nacional de Cultura, fruto de extenso processo de consultas públicas que foi transformado em lei sancionada pelo presidente, e que agora está sendo ignorado pela ministra. Afirmamos que, se a gestão anterior teve acertos, foi por procurar aproximar o Ministério das forças vivas da cultura, compreendendo que há um novo protagonismo por parte de indivíduos, grupos e populações até então tidos como “periféricos”, entendendo as extraordinárias possibilidades da Cultura Digital. Essa não é apenas uma discussão sobre ferramental tecnológico e jurídico, mas sobre todo um novo contexto criativo e cultural, pois essas tecnologias têm sido apropriadas e reinventadas em alguma medida por esses novos atores. É nesse território fundamental, da inserção da Cultura Digital no centro das discussões de políticas culturais do Ministério e da busca da capilaridade de programas como o Cultura Viva, com os Pontos de Cultura, que a Ministra sinalizou firmemente um retrocesso.
Ao bloquear o processo de reforma da lei dos Direitos Autorais, ignorando as manifestações recebidas durante 6 anos de debates, 150 reuniões realizadas em todo o país, 9 seminários nacionais e internacionais, 75 dias de consulta pública através da internet que receberam 7863 contribuições, a Ministra afronta todo um enorme esforço democrático de compreensão e elaboração. Se há uma explicação constrangedora nessa urgência em barrar uma dinâmica política tão saudável, é a de vir em socorro a instituições ameaçadas em seus privilégios, como o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e as associações que o compõem, que apoiaram de forma explícita e decidida as políticas culturais e o candidato derrotado no pleito eleitoral presidencial.
Mas esse “socorro”, como dissemos, se dá ao arrepio da Lei 12.343 de 2 de dezembro de 2010, que aprovou o PNC, estabelecendo claramente a obrigação de reforma da Lei dos Direitos Autorais (conforme os itens 1.9.1 e 1.9.2 que determinam “criar instituição especificamente voltada à promoção e regulação de direitos autorais e suas atividades de arrecadação e distribuição” e “revisar a legislação  brasileira sobre direitos autorais, com vistas em  equilibrar os interesses dos  criadores, investidores e usuários,  estabelecendo relações contratuais mais  justas e critérios mais  transparentes de arrecadação e distribuição”). Ao afirmar que o texto da lei é “ditatorial” e que a proposta construída durante o governo Lula é “controversa” e não atende os “interesses dos autores”, a Ministra deliberadamente mistura o interesse dos criadores com o dos intermediários, e contrabandeia para o seio do governo Dilma precisamente as posições derrotadas com a eleição da Presidenta.
A questão da retirada da licença Creative Commons do portal do MinC também merece ser mencionada, por seu simbolismo. O Ministério da Cultura do governo Lula foi pioneiro em reconhecer que as leis de direito de autor estão em descompasso com as práticas desta época, e que seria imperioso aprimorá-las em favor dos criadores e do amplo acesso à cultura. Esse avanço foi expresso no PNC no item 1.9.13, que prevê  ”incentivar e fomentar o desenvolvimento de produtos e conteúdos culturais intensivos em conhecimento e tecnologia, em especial sob regimes flexíveis de propriedade intelectual”. Ao contrário do que tem dito a ministra, as licenças CC e similares visam regular a forma de remuneração do artista, e não impedi-la. Elas buscam ampliar o poder do autor em relação à sua obra e adaptar-se às novas formas de produção, distribuição e remuneração, aos novos modelos de negócio que essas tecnologias possibilitam.
Assim, entendemos que as iniciativas da atual gestão do Ministério da Cultura não são fiéis nem à sua campanha presidencial, nem ao Plano Nacional de Cultura e nem à discussão acumulada, representando, na melhor das hipóteses, um voluntarismo desinformado e desastroso, e na pior delas um retrocesso deliberado. Apoiamos a Presidenta Dilma Rousselff em sua manifestada intenção de continuar valorizando e promovendo a cultura brasileira, fortalecendo uma liderança global em discussões onde a nossa postura inovadora vinha se destacando dos modelos conservadores pregados pela indústrias cultural hegemônica dos Estados e da Europa. Não à toa, os Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores assumiram a liderança munidal na aprovação da Convenção da Diversidade Cultural, que se constituiu em elemendo fundamental para a promoção da autonomia dos grupos culturais, reconhecendo as tecnologias desenvolvidas pela sociedade e garantindo seu acesso, como o discurso do próprio Minc apontada em 2009.
Nesse sentido, é necessário que o Ministério da Cultura se coadune à perspectiva deste governo. Os signatários desta Carta Aberta solicitam uma audiência com a presidência, com o objetivo de debater a orientação das políticas culturais do governo Dilma. Não se trata de questões pontuais, mas de concepção, de orientação política do mandato que, no campo da cultura, vem constrangendo aqueles que trabalham pela continuidade e ampliação das políticas construídas ao longo do governo Lula.

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