sexta-feira, 13 de maio de 2011

MinC e a política do subterfúgio - Pablo Ortellado


A ascensão de Ana de Hollanda ao Ministério da Cultura mobilizou de tal maneira o setor cultural que uma grande rede de articulação intersetorial no campo da cultura se formou: o Mobiliza Cultura. Essa rede de produtores, consumidores e pesquisadores da cultura produziu uma carta crítica à orientação política do MinC que até o momento reuniu duas mil e quinhentas assinaturas. O ministério reagiu dizendo que a carta era “vazia”, que o movimento era fumaça e movido por interesses escusos. A grande quantidade de assinaturas que inclui personalidades e grupos muito diversos e significativos deveria ser suficiente para contestar a acusação de que a carta é obra de meia dúzia de ativistas ligados aos meios de comunicação. Mas a acusação da motivação por interesses escusos e a de que o movimento carece de pauta merece um comentário mais aprofundado.

Quem não tem projeto?

É muito curioso que a acusação de falta de projeto venha justamente da atual gestão do MinC marcada por uma agenda oculta dissimulada por imperativos técnicos. Declaradamente, Ana de Hollanda e seus assessores dizem estar dando sequência ao governo Lula, mas, objetivamente, têm trabalhado na contramão – desconstruindo boa parte dos fundamentos elaborados nos últimos oito anos.
Pelo menos três ações de grandes implicações políticas foram tomadas sob alegações técnicas que mascaram um projeto político liberal, proprietário e orientado ao grande capital:

*Não regulação das associações de gestão coletiva (como o ECAD). Ana de Hollanda, desde a primeira entrevista no dia 22 de dezembro do ano passado defende a tese de que a Constituição brasileira não permite a regulamentação de entidades de gestão coletiva como o ECAD. Essa tese que evidentemente é defendida pelo ECAD, está longe de ser consensual nos meios jurídicos. No entanto, ela é usada para dissimular um projeto político, como se houvessem barreiras técnicas para a implementação de uma regulação efetiva. Ao invés de afirmar explicitamente que “o MinC é contra a regulação estatal das associações de gestão coletiva”, o que evidenciaria o fundamento liberal e orientado à defesa de interesses privados da política, diz que “a Constituição não permite”. A pergunta que precisa ser feita claramente ao ministério é: o MinC é a favor da regulação governamental da arrecadação e distribuição coletiva de direitos autorais? Se for a favor, deve então fazer uma consulta ampla à comunidade de juristas e será então informada que a gestão coletiva, na qualidade de atividade econômica exclusiva que cumpre função pública de garantir tanto o direito dos autores, como o direito dos cidadãos de acesso à cultura, não apenas pode, como deve ser fiscalizada pelo estado.

* Retirada da licença Creative Commons do site do ministério. Uma das primeiras medidas efetivas do Ministério da Cultura foi a retirada da licença Creative Commons do seu site. A medida foi interpretada como simbolizando uma mudança na orientação política anterior de estimular o compartilhamento e o reuso de informações públicas. O Ministério, no entanto, novamente alegou uma motivação técnica: o logotipo do Creative Commons estava no site “sem licitação”. Deixando de lado o pretexto ridículo, o fato é que novamente o projeto não foi declarado. Ao invés de dizer claramente, “o MinC é contra a existência de uma política de compartilhamento e reuso de informações públicas”, o que explicitaria o fundamento proprietário da política, diz apenas que “não podemos adotar essa licença sem licitação”. A pergunta que precisa ser feita ao MinC é: o MinC é a favor de uma política de compartilhamento e reuso das informações públicas que produz? Se for a favor, basta desenvolver uma licença pública para o próprio ministério, independente das licenças Creative Commons.

* Modificação do anteprojeto de lei que reformava a lei de direito autoral. O Ministério também recentemente submeteu o anteprojeto que reformava a lei de direito autoral a uma nova rodada de consulta pública. As alegações para a medida foram duas: a de que alguns setores não teriam sido ouvidos e de que há medidas que não respeitam os tratados internacionais. Como o primeiro argumento simplesmente não faz sentido, já que aconteceram seis fóruns nacionais, mais de oitenta reuniões setoriais e mais de sete mil contribuições à consulta pública, novamente resta o argumento técnico de que a reforma contrariaria o direito internacional. Novamente, ao invés de dizer claramente que “o MinC é contra a existência de limitações amplas para o direito autoral que autorizam o uso livre”, o que tornaria clara a orientação da política, proprietária e restritiva ao acesso à cultura, diz simplesmente que “os acordos internacionais não permitem essas medidas”. A pergunta que precisa ser claramente feita ao MinC é: o MinC é a favor de uma política de direito autoral que permita usos livres para casos de interesse público como a cópias de trechos de livros por estudantes sem fins comerciais? Novamente, se for a favor, precisará apenas buscar uma assessoria jurídica diferente daquela que lhe foi fornecida pela indústria, já que a tese de que a limitação para cópia de livros contraria a Convenção de Berna não é nada predominante no meio jurídico. Na verdade, a limitação para a cópia de trechos de livros para usos educacionais sem finalidade comercial é tão claramente de acordo com o direito internacional que ela está incorporada em legislações nacionais tão diferentes como a canadense, a israelense, a portuguesa e a americana.
Em nenhum desses casos o empecilho para a efetivação da política é jurídico. Os argumentos jurídicos foram apenas produzidos para que não se tornasse evidente a agenda política oculta, contrária ao Plano Nacional de Cultura e aos compromissos políticos assumidos pela presidente Dilma.

Interesses escusos?

Enquanto o MinC omite sua verdadeira agenda política com subterfúgios técnicos, ataca aqueles que o criticam com argumentos que no meio científico chamamos de ad hominem – que desqualificam o interlocutor ao invés de responder aos questionamentos. Esse procedimento busca desviar a atenção do debate racional para a troca de acusações. Assim, dizem que os críticos são pró-Juca, que estão ligados ao PV ou ao PCdoB, que estão mancomunados com a grande imprensa ou que querem apenas ter acesso privilegiado aos fundos públicos. Essa manobra, que é complemento da anterior, busca evitar discutir as questões substantivas de política cultural que o movimento Mobiliza Cultura traz à tona.
Ao contrário do MinC, o movimento tem trazido claras propostas de política cultural, que nada mais são do que aquelas desenhadas no processo da Conferência Nacional de Cultura e consolidadas no Plano Nacional de Cultura. Em oposição às políticas da atual gestão do ministério, essas políticas se afirmam pelo menos nos seguintes pontos:

* Reforma da lei de direitos autorais protegendo os criadores nos contratos com os intermediários e garantindo que em circunstâncias de interesse público tenhamos livre uso de obras por meio de limitações.

*Reforma da lei Rouanet resgatando o papel do estado como financiador da cultura e impedindo o dirigismo privado com dinheiro público na forma da renúncia fiscal sem contrapartida.

* Consolidação do programa Cultura Viva, com a valorização da cultura popular e com a construção de formas alternativas de prestação de contas que reconheçam as particularidades dos grupos populares.

* Criação de uma política de economia da cultura que não busque simplesmente fortalecer o papel da indústria e do mercado, mas que busque criar instrumentos regulatórios e de incentivo para que os criadores se emancipem das restrições impostas pelos intermediários e que maximize o processo de apropriação social da riqueza cultural por meio das tecnologias digitais.

Como se vê, não se trata de fumaça. O debate em termos substantivos está colocado. Resta ao MinC vir a público para enunciar sem subterfúgios qual a política cultural que defende.

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